O voto, este desconhecido – Os caminhos para o sufrágio universal brasileiro

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Em 1988, mais precisamente em 05 de outubro, o Brasil renascia como uma DEMOCRACIA, mais precisamente como um Estado Democrático de Direito, depois de séculos de Monarquia, Oligarquias e Ditaduras, que moldaram o nosso modo ser, de ver o Mundo e de como tratamos a coisa Pública.

Com a Constituição Cidadã, que neste ano completará 35 anos, um ponto foi esquecido, pouco ou quase nada noticiado e quase nada estudado, como se não fosse importante ou como se sempre estivesse ali, como é o caso do direito de voto facultativo aos analfabetos e aos maiores de 16 e menores de 18 anos e, com isso, ampliando o sufrágio aos adolescentes e aos analfabetos, consolidando, desde então, o sufrágio universal e o voto direto e secreto, com valor igual para todos (art. 14, §1º, da Constituição Federal de 1988).

Porém, antes de 1988, aqui no Brasil, não funcionava assim, no princípio ninguém votada, porque o Rei era escolhido por Deus, o que ocorre ainda em alguns lugares do mundo, e os que não eram nobres eram servos ou escravos, como a escolha do monarca era uma demanda divina, eleição nem se cogitava.

Com a Revolução Francesa, em 14 de julho de 1789, os franceses (burguesia, camponeses e a classe urbana) deixaram a condição de servos para se tornarem Cidadãos da França, extinguiram a Monarquia Absolutista, guilhotinaram o Rei Luís XVI e a Rainha Maria Antonieta, instituíram novos princípios de Liberté, Égalité, Fraternité e aprovaram a DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO e, com isso, as escolhas dos mandatários deixaram de ser uma demanda divina para ser uma escolha popular e cidadã.

Porém, foi após a Revolução Americana, de 4 de julho de 1776, quando as treze Colônias dos Estados Unidos da América declararam independência da Inglaterra, que o conceito de sufrágio universal e direito de voto direto e secreto, com valor igual para todos começou a tomar forma no mundo real e influenciar os demais Estados Democráticos ao redor do Mundo.

Como se sabe a História não é linear e no primeiro momento a Monarquia Absolutista foi substituída por parte da burguesia mais abastada econômica e financeiramente, impedindo que os demais participassem ativa e passivamente da construção e formação do Estado e da participação no governo, criando assim uma classe de privilégios, não mais os nobres, mas a alta burguesia, uma vez que ela criava as Leis e Administrada esse Novo Estado.

No Brasil no ano de 1824, o voto censitário só assegurava a participação ativa e passiva, isto é, votar e ser votado, aos homens brancos maiores de 25 anos e que comprovassem uma renda mínima anual oriunda de emprego, comércio, indústria ou propriedade de terras. Como o sistema político e econômico da época era majoritariamente agrário e escravocrata, só a esse segmento da sociedade brasileira era assegurado o direito de voto e de serem votados e consequentemente e com o Imperador Dom Pedro I faziam as Leis as executavam e administravam e governavam o Estado.

Uma pergunta precisa ser feita, pois são as perguntas que movem o mundo e não as respostas: De onde surgiu esse conceito de que uma pequena parte da população se auto intitulou Cidadã e os demais continuaram servos ou escravos, sendo que os princípios que regiam e regem esse Estado Livre são Liberté, Égalité, Fraternité?

Primeiro, foi a alta burguesia instruída e detentora de poder econômico que fez e financiou a ruptura com a monarquia absolutista e escreveu as novas regras, princípios e conceitos para esse novo Estado.

Segundo, foi o entendimento predominante no final dos anos 1760, nos Estados Unidos da América, de que só eram livres nesse estado livre quem era independente economicamente e o restante que eram dependentes não possuíam capacidade para decidir, opinar e participar dos assuntos de estado, porque lhes faltavam “vontade própria” e assim seriam influenciados a descartar o direito de voto em favor daqueles que dependiam ou de outros mais poderosos economicamente.

Alexandre Keyssar (2014, p. 44) lembra, que Sir Willian Blackstone, em seus Comentários sobre as Leis da Inglaterra, foi o expoente defensor do voto qualificado:

A verdadeira razão de exigir algum tipo de qualificação, no que diz respeito à propriedade, dos eleitores é excluir pessoas que estavam “em tão má situação” que não tinham “vontade própria”. Se essas pessoas tivessem acesso aos votos, seriam tentadas a se descartar deles sob alguma influência indevida ou de outro tipo. Isso daria maior participação nas eleições a um homem importante, astuto ou rico do que é consistente com a liberdade geral.

Esse pensamento foi tão avassalador que perdurou por séculos e influenciou os demais Estados Republicanos, e que, por incrível que pareça, até os dias atuais sentimos seus efeitos e a tentativa de setores da sociedade desejarem qualificar o direito de votar e influenciar indevidamente camadas mais sensíveis do eleitorado.

No Brasil, por exemplo, só em 5 de outubro de 1988 foi assegurado, como direitos fundamentais, o sufrágio universal e o voto livre, direto e secreto, com valor igual para todos, garantindo a participação ativa dos analfabetos e aos maiores de 16 e menores de 18 anos, colocando um fim ao voto censitário e qualificado.

Com a ideia de que as pessoas dependentes não possuíam vontade própria, o voto censitário não impediu de participar das decisões de estado e de governo somente os homens brancos sem renda, mas os homens negros, as mulheres brancas e negras, os indígenas e por fim os analfabetos, fazendo com que as decisões de como o estado iria funcionar ficassem concentradas nas mãos de uma pequena classe dominante.

No Brasil, por exemplo, as mulheres só conquistaram o direito ao voto em 24 de fevereiro de 1932 e só em 2022 foi garantido às mulheres recursos públicos para promover e difundir a participação política das mulheres e o financiamento público para as campanhas eleitorais femininas (Emenda Constitucional nº 17/2022).

Com o passar do tempo, nos Estados democráticos, os operários, homens brancos pobres e negros, mulheres brancas e negras, indígenas e os analfabetos, começaram a questionar o seu papel no Estado, uma vez que este mesmo Estado que negava a participação nas decisões de governo os convocavam para financiar e defender o Estado, isto é contribuíam financeiramente, pagando impostos, e com a própria vida, lutando em guerras, mas eram proibidos de participar nas criações de Leis que os beneficiassem, porque eram impedidos de votar e consequentemente de serem votados.

Benjamim Frankling, em 1828, já demonstrava as contradições e as ilegalidades do voto qualificado, como lembra o Professor Alexander Keyssar (2014, p. 35):

Hoje, um homem é dono de um jumento que vale cinquenta dólares e ele tem o direito de votar; mas antes da próxima eleição o jumento morre. O homem, entretanto, tornou-se mais experiente, seu conhecimento dos princípios de governar e sua familiaridade com a humanidade são extensos e ele é, portanto, mais bem qualificado para fazer uma seleção adequada dos governantes -, mas o jumento está morto e o homem não pode votar. Agora senhores, digam-me, por favor, em quem está o direito de sufrágio? No homem ou no jumento?

No Brasil, a garantia do direito de voto teve um caminho diferente da dos EUA, que desde o princípio vem consolidando o sufrágio universal por meios democráticos e sem rupturas ditatoriais, como é o nosso caso, confirmando com isso realidades distintas.

Antes da Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, o Brasil teve seis (06) Constituições, uma no Império em 1824 e cinco na República, 1891 (Brasil República), 1934 (Segunda República), 1937 (Estado Novo), 1946, 1967 (Regime Militar), sempre garantindo o direito e ampliando o direito de voto e ao mesmo tempo restringindo e proibindo a participação popular nos assuntos de Estado.

A Constituição de 1946, que colocou fim ao Estado Novo, que na maior parte da 2ª Guerra Mundial apoiou o regime nazifascismo, garantiu e ampliou o direito de voto e, com isso, ampliou a participação popular nas eleições, sendo interrompida com o golpe militar de 1964 e com a Constituições de 1967.

O Professor Filomeno Moraes (2018, p. 183), citando o Professor José Murilo de Carvalho, confirma esse crescimento:

Em 1930, os votantes não passavam de 5,6% da população. Na eleição presidencial de 1945, chegaram a 13,4%, ultrapassando, pela primeira vez, os dados de 1872. Em 1950, já foram 15,9%, e em 1960, 18%. Em números absolutos, os votantes pularam de 1,8 milhão em 1930 para 12,5 milhões em 1960. Nas eleições legislativas de 1962, as últimas antes do golpe de 1964, votaram 14,7 milhões. O número de eleitores inscritos era em geral 20% acima dos votantes, devido abstenção que sempre existia, apesar de ser o voto obrigatório. Em 1962, por exemplo, o eleitorado era de 18,5 milhões, correspondente a 26% da população total.

Com a ampliação do sufrágio e, consequentemente, do direito de voto para as camadas mais populares da sociedade, questões sociais de interesse desse segmento não eram atendidas, mesmo com constantes pressões da necessidade que ocorressem “reformas de base” para contemplar esse crescente segmento social, que estava participando ativa e passivamente das decisões do Estado brasileiro, não eram beneficiados, pois a composição do Congresso Nacional, local onde se aprovam as reformas, ainda era composta majoritariamente pela mesma oligarquia oriunda do fim do império e início da República.

Com isso, para Roland Corbisier, lembrado pelo Professor Filomeno Moraes (2018, p. 183), a reforma, que deveria anteceder 1964, deveria ser a Reforma Eleitoral, pelo simples fato de que a maioria dos integrantes do Congresso não iriam ir contra os seus próprios interesses:

[…] Ora, se o Legislador Federal é constituído, em sua maioria, por latifundiários, grandes industriais, comerciantes e banqueiros, ou por seus representantes, como pretender possa votar as reformas que contrariam os interesses dessa maioria conservadora?

Roland Corbisier já verificava em 1968 essa incongruência de que mesmo o direito de voto incorporando nos setores médios e baixos da classe média os efeitos não refletiam na mesma proporção no Parlamento brasileiro, o que foi também constatado pelo Professor Celso Furtado, que identificou que o voto dirigido para o Poder Executivo era diferente do voto para o Legislativo, sendo este ainda controlado pela “velha oligarquia” e capaz de paralisar o exercício do governo, como bem explica o Professor Filomeno Moraes (2018, p. 185/6):

Na análise de Furtado, com as Constituições de 1934 e 1946, o sistema eleitoral, o regime federativo, a estrutura de partidos – de patronagem – estabeleciam uma representação predominantemente oligárquica no Congresso Nacional, centro do poder político de fato. Todavia, o processo de urbanização, advindo das modificações na estrutura social, valorizou o voto dos habitantes da cidade, que se fez sentir no voto majoritário dirigido ao Poder Executivo. Por conseguinte, um Legislativo controlado pela “velha oligarquia” e um Executivo de cunho progressista acarretariam um relacionamento entre os poderes capaz de paralisar virtualmente o exercício do governo.

Com o golpe militar em 1964 o direito de voto foi mais uma vez suprimido e de maneira definitiva, os Partidos Políticos foram extintos, foi instituído o bipartidarismo – ARENA e MDB, as eleições para o Poder Executivo deixaram de ser diretas e passaram a ser indiretas e as garantias individuais e coletivas foram suprimidas com a entrada em vigor do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que perdurou até 13 de outubro de 1978, quando o e então Presidente da República General Ernesto Geisel revogou todos os atos institucionais.

Em 2024 iremos completar 200 anos da nossa primeira Constituição e nesse tempo entre erros e acertos foi construída uma sociedade onde um seleto seguimento decidiu como este Estado deveria ser gerido e administrado, criando suas Leis, Decretos, Portarias etc., o direito de voto foi ampliado, restringido e proibido, porém, nesses últimos 35 anos pode-se afirmar que o direito de voto é assegurado universalmente ao povo brasileiro.

Logo, precisamos falar mais e conhecer melhor o que significa o VOTO nessa sociedade democrática, pois só ele é capaz de consolidar os ideais da Revolução Francesa de Liberté, Égalité, Fraternité, por meio de políticas públicas que atendam a universalidade democrática inclusiva capaz de assegurar o avanço da modernidade tardia não cumprida por séculos de ruptura democrática.

Assim, mesmo que o VOTO seja uma ação a serviço da Cidadania, esta Cidadania através do eleitor é que decidirá, mediante as escolhas, que democracia iremos construir, uma civilizada ou uma boçal, como bem descreve o Professor Filomeno Moraes (2018, p. 189):

Como suma das sumas, nunca é ocioso que a construção de uma democracia política ou poliarquia depende, em boa medida, da ação dos eleitores de torná-la uma democracia civilizada ou uma democracia boçal.

Hoje, com mais de 156 milhões de eleitores, quem sabe em um breve futuro possamos ter orgulho de nossas escolhas ao mesmo tempo em que conhecemos melhor o que vem a ser o Voto, este desconhecido.

*Fernando Baraúna, Advogado, sócio proprietário do Escritório BARAÚNA, MANGEON e Advogados Associados, Ex-Procurador Geral/Dourados – MS, Especialista em Direito Público – PUC/RS, Direito Eleitoral – Ibmec-Damásio/SP e Direito Tributário – UNIDERP/MS, e Assessor Jurídico em Administrações Públicas.

Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

MORAES. Filomeno. Sufrágio, Voto e Sistema Eleitoral no Brasil: Descaminhos e Caminhos da Inclusão Política. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura. (Coords.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

KEYSSAR, Alexander. O Direito de Voto: a controversa história da democracia nos Estados Unidos. 1. ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2014.